19/03/11

A confusão entre Dívida e criação de Moeda

Originalmente publicado em Quarta República.
A causa de todos os males ou de todos os bens?


«o dinheiro é emitido com divida, vai haver sempre divida. a criação de mais dinheiro com mais divida é um escalar que nos trouxe ao estado em que estamos hoje. desta forma há sempre problema da divida [sic]».


Viva!


Perante uma afirmação como a supra-citada e, tendo em conta o desconhecimento generalizado sobre o funcionamento do sistema financeiro, parece-me necessário explicar: Dívida, seja ela pública ou nacional, é uma coisa; criação de dinheiro é outra!


Dívida Pública é o dinheiro que o Estado terá de pagar, juros incluídos, quando se vencerem os prazos das aplicações financeiras emitidas para angariar dinheiro. Este é um grande problema em Portugal, como todos sabemos.


Dívida nacional é o dinheiro que o Estado e as empresas de um país devem aos Estados e empresas estrangeiras, devido a empréstimos e compras por pagar que, quanto mais tempo levarem a ser pagos, mais juros se acrescentam. Este é o problema da Islândia, discutido no link acima.


Como já não utilizamos o "padrão-ouro", a moeda em circulação não tem correspondência em metais preciosos guardados no Banco Central, neste caso, o Banco Central Europeu. Hoje, a economia de mercado baseia-se num sistema fiduciário, ou seja, o dinheiro é imaginário e criado do nada, fruto de uma operação matemática. O valor do dinheiro é, meramente, relativo à confiança de quem o utiliza. E foi este sistema que nos permitiu atigir o nível de progresso e bem-estar actual.


Na nossa economia liberal, o dinheiro "aparece" de duas formas: o Banco Central emite Divisa e o sistema financeiro (os malditos bancos!) cria moeda. Em nenhuma destas situações há lugar ao aumento ou diminuição das Dívidas pública ou nacional.


A moeda pode ser emitida, por exemplo, por falta de liquidez (pouco dinheiro em circulação, normalmente por haver muita poupança ou por a balança comercial ser negativa e muito dinheiro ir para o exterior), por a moeda estar muito forte no mercado cambial (isso prejudica as exportações, já que os produtos ficam mais caros para os compradores) ou para pagar a Dívida Pública (só em último recurso!). O problema é que, se não houver criação de riqueza que justifique a emissão de moeda, está-se a inventar dinheiro a partir do nada. Portanto, se a riqueza não acompanhar, a emissão de moeda implica uma desvalorização da mesma e, se a moeda vale menos, os bens e serviços têm de aumentar o preço, ou seja, aumenta a inflacção. Por este motivo é que é um absurdo emitir moeda para pagar a Dívida pública!


Mas, a moeda também é criada e, numa economia saudável, multiplica-se, graças aos bancos comerciais. E o milagre da multiplicação da moeda começa porque há dois tipos de moeda: a moeda física, que circula, e a moeda escritural, ou bancária. É preciso, agora, acrescentar que há três tipos de bancos: Banco Central, bancos de investimento (como o B.P.P.) e, os que criam dinheiro, os bancos comerciais. E é nestes últimos que nos vamos focar.


Os bancos são empresas que recebem depósitos e, como intermediários financeiros, com esses fundos concedem empréstimos e fazem investimentos. Como qualquer empresa, o objectivo é o lucro para os accionistas. Não é demais acrescentar que banco que se preze, tem de ter liquidez (capacidade de converter depósitos em moeda física), rendibilidade (produção de lucro) e solvência (capacidade de satisfazer as suas obrigações para com os credores).


A massa monetária é constituida pela moeda física em circulação e pela moeda escritural depositada nos bancos. A moeda física depositada nos bancos não conta como moeda, senão estaríamos a contar duas vezes o mesmo dinheiro. A moeda física na posse dos bancos e os depósitos destes no Banco Central (que também não contam como moeda), constituem as Reservas, impostas por lei numa percentagem dos depósitos ou, caso os bancos queiram, maior - são as Revervas que nos garantem, quando vamos ao banco fazer um levantamento, que o banco tem moeda física para nos entregar.


Vamos, portanto, supôr que um banco tem as Reservas legais, por exemplo, de 20%. Eu vou ao banco depositar 1000€ em moeda física: o meu depósito vai aumentar em 1000€ o Passivo, mas, a moeda física que entreguei vai contar como Reserva, portanto, também vai aumentar em 1000€ o Activo. Relembremos que as Reservas não contam como moeda. Para satisfazer a obrigação legal de 20%, 200€ terão de ficar em caixa, logo haverá 800€ à disposição do banco para investir ou emprestar.


Vamos, agora, supôr que aparece alguém no banco a pedir um empréstimo de 800€. Se for um dos poucos portugueses a quem os bancos ainda concedem crédito, o banco vai depositar-lhe os 800€ na conta e ele vai levantá-los. Os empréstimos contam como Activos, logo, no balanço do banco, haverá um Passivo de 1000€ do meu depósito, um Activo de 200€ da Reserva legal e outro Activo de 800€ do empréstimo. O banco emprestou o meu dinheiro! Mas, como os 800€ do empréstimo foram levantados, aumentou a moeda em circulação, logo, o banco ao conceder o crédito, criou moeda. Além dos meus 1000€, há agora alguém com 800€, portanto, há 1800€ para serem gastos.


E não fica por aqui! O indivíduo que pediu o empréstimo vai gastar o dinheiro, vamos imaginar, em roupas e mercearias. Os lojistas a quem ele pagou (partindo do princípio que pagou...) vão, concerteza, depositar o dinheiro nos bancos e a criação de dinheiro há-de continuar.


Isto é o processo do multiplicador do crédito. É claro que os aumentos de criação de moeda serão cada vez menores. Deixa de ser possível criar moeda a partir dos meus 1000€ quando o volume de depósitos consequentes tiver crescido tanto que as Reservas são exactamente 20% do total de depósitos e iguais a 10000€. Neste ponto não há mais excesso de Reservas no sistema bancário, portanto, a expansão do crédito e resultante criação de moeda terminou.


Para não complicar, evitei referir as consequências de uma maior ou menor quantidade de moeda na inflacção ou nas taxas de juro. Nem abordo outro processo tão importante como a criação de moeda, a destruição de moeda. Outro factor que deveria ser desnecessário referir é isto: o processo de multiplicador do crédito é um processo finito! Enquanto houver moeda a ser criada, há crescimento económico, mas, quando a criação de moeda acaba, o crescimento económico pára e ficam as dívidas para pagar, com juros! Qualquer pessoa sensata percebe, quando chegamos a este ponto que, se a criação da moeda (ou, para este efeito, o crescimento pela concessão de crédito) não for acompanhada de um aumento da riqueza, o ciclo de crescimento termina e a economia entra em recessão.


Servindo-nos, então, da discussão que deu origem a este artigo - os desvarios esquerdistas da Islândia em consequência da falta de liquidez do sistema bancário - chegamos ao problema de Portugal: não há criação de riqueza!


A destruição do sector produtivo português começou no P.R.E.C., com as nacionalizações e reforma agrária, continuou no cavaquismo, com o desmantelamento do sector primário, e acabou com a inércia de quem nos governa até hoje! O sector da transformação foi arrastado pelo colapso do sector primário e as empresas que não desapareceram entretanto (a típica indústria portuguesa de mão-de-obra barata), estão agora a fechar ou a "deslocalizar-se" - eufemismo para irem explorar trabalhadores noutros países que estão a seguir o mesmo modelo económico que nos levou ao estado em que estamos. Aqueles que preseveraram, investiram, criaram empregos, produzem valor acrescentado e contribuem para o crescimento económico, depois do desprezo a que foram votados até há pouco, são agora asfixiados com impostos (para pagar os erros dos outros) e limitações à produção (por motivos que não interessam para este artigo).


A aposta portuguesa foi nos sector dos serviços que traz dinheiro rápido, mas, não produz riqueza. Quando muito, actividades como o turismo trazem divisa estrangeira - é como ter alguém a esvair-se em sangue e, em vez de tentar estancar a hemorragia, ir remediando com transfusões.


Chegamos, assim, àquilo que, no meu entender, desde as aulas de Economia Política com o Professor Arlindo Donário, considero o fracasso fundamental deste país: a falta de capital humano. A falta de educação - profissional e intelectual - de um povo é o maior obstáculo ao seu desenvolvimento. É indiscutível que pobreza gera pobreza e ignorância gera ignorância. O passo de gigante foi dado com o investimento na educação pública, mas, num mercado globalizado, não basta ter a maior parte da população com cursos superiores: a competição deve ser na qualidade das competências e não na "contagem de cabeças". A renovação das gerações é uma certeza, mas, o que mais falta, é uma revolução das mentalidades.


Impõe-se, num artigo desta dimensão, uma conclusão em jeito de "moral da história". Se algo há a retirar daqui é a fé nos Estados de Direito Democráticos, berços da economia liberal que colocou a sociedade Ocidental em patamares de desenvolvimento inéditos na história da Humanidade. Defendo, obviamente, a regulamentação dos mercados - a ausência de regras transforma a democracia em capitalismo selvagem, o que não é melhor que o comunismo! Onde a democracia não funciona, nada funciona - é uma certeza que a História nos dá. Por isso é que observo com um misto de riso e tristeza a deriva da Islândia, rumo a sistemas que já provaram não trazer nada de bom. Novamente a História, o derradeiro juíz, dar-me-á razão...


Cumprimentos!


António Gaito

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