30/09/06

Quaestio de veritate

"Chega sempre um momento na história em que quem se atreve a dizer que dois e dois são quatro é condenado à morte"
Albert Camus
Uma vez disseram-me, e com toda a razão que, nos blogues, quase interessa tanto o que se diz como o que não se diz. Dado que o silêncio em determinados assuntos é também uma forma de opinião. Habitualmente entendido como falta da mesma, falta de interesse, ou mesmo uma abstenção. Entendo o mesmo para as colunas de opinião.

Deste modo, tendo em conta o que aconteceu no dia 12 de Setembro de 2006, na Universidade de Regensburg e a catadupa de reacções que se seguiram, eu, não poderia de modo algum, ficar calado.

Li e disponibilizei o discurso do Santo Padre do referido dia.

Todos, de alguma forma, já lemos ou ouvimos a notícia de mesmo. Já vimos também a avalanche de reacções que o discurso originou.

Sabemos ainda que muita coisa foi dita. Que as palavras do Santo Padre foram, de facto, tiradas do contexto. Sabe-se que o Papa ao citar o imperador bizantino Manuel II Paleólogo - teólogo ortodoxo e antipapista - defendeu o diálogo entre religiões e, sobretudo, o diálogo entre religião e razão.

Se ler, na íntegra, o discurso, com certeza que achará que se trata de uma intervenção brilhante e ricamente preenchida de ensinamentos.

Por outro lado, a deturpação da mensagem só pode ter duas origens: a ignorância e/ou a má-fé. Acusar Bento XVI de começar uma Cruzada é ler ao contrário o que foi dito.

Concordo e cito o que disse Nuno Rogeiro no Correio da Manhã, dia 17 Setembro, 2006:

" Em várias passagens, cita controvérsias mortais dentro do pensamento ocidental, do Cristianismo, e da própria Igreja Católica. Explica, por exemplo, que a tentativa de retirar à última a herança helenística esteve na origem da consideração da fé como um mecanismo separado da realidade. Lembra, porém, que quando se diz, na (primeira) versão grega dos Evangelhos, "Ao Princípio era o Verbo" (Logos), isso significa "no começo era a razão e a palavra".

O logos, a palavra da razão, que consubstancia a verdade, apela ao espírito. Já a guerra se joga para o corpo. Nesse sentido, a guerra é ‘irracional’, ao mesmo tempo que imoral. Citando Manuel II Paleólogo, em 1391, usa uma passagem traduzida por Theodore Khoury, explicando que, para o espírito helenístico do imperador bizantino, cercado em Constantinopla, parece "errado, injusto e desumano" que o Islão defenda a guerra, contra a razão.

Devastadora, a citação usa-se como mero exemplo, numa discussão teológica que, em vários pontos, é também demolidora para as teorias cristãs da ‘guerra justa’."

Como se explica então a avalanche de indignação gerado pelas palavras do Papa no mundo muçulmano e não só?

No mundo muçulmano radical só entendo como uma manipulação terrorista, posta em prática para exaltar os ânimos.

Do sector moderado, que também reagiu negativamente, só se pode explicar ou por desconhecimento do que foi realmente dito pelo Santo Padre, ou por medo das consequências da posição dos fanáticos radicais.

Diz vasco Graça Moura, no Diário de Notícias, 20 Setembro, 2006:

"O Papa podia também ter invocado a História. Decorreram apenas 79 anos entre a morte de Maomé e a chegada dos Árabes à Península Ibérica (711), após terem tomado conta de praticamente todo o Médio Oriente e toda a bacia do Mediterrâneo, mas decorreu mais de um milénio entre a morte de Cristo e a Primeira Cruzada (1096-1099), o que indicia imediatamente a resposta à questão de saber qual das duas religiões, na origem, tinha vocação mais expansionista e guerreira.

E o Papa podia ainda sem dúvida ter referido expressamente todas as barbaridades que, nos últimos anos, andam a ser ditas e praticadas pelo terrorismo de sinal islâmico, em nome de Alá, por esse mundo fora.

Não fez nada disso. Abordou a questão em termos extremamente sérios e sóbrios, perante um auditório universitário.

Imagine-se agora que, por uma razão de simetria, um mufti qualquer, numa universidade muçulmana qualquer, se punha a censurar violentamente as Cruzadas, ou a falar dos crimes da Inquisição imputando-os à Igreja Católica, dizendo as últimas do sinistro tribunal e da religião que o suportava, e que os católicos, por causa disso, desatavam a apedrejar as mesquitas, a ameaçar de morte os muçulmanos e a exigir a apresentação imediata de desculpas...

O terrorismo islâmico engendra cada dia novas formas de manipulação das massas. Primeiro, foram as caricaturas. Agora, é este novo alvoroço hipócrita."

Mas, após o discurso e estando os ânimos excessivamente exaltados, da Santa Sé veio, com uma enorme humildade, bondade e nobreza, uma resposta. Pelas palavras do porta-voz do Papa, Federico Lombardi:

"O Papa não teve a intenção de fazer um estudo aprofundado sobre a jihad e pensamento muçulmano neste domínio e muito menos de ofender a sensibilidade dos crentes muçulmanos... Aquilo que está bem enraizado no coração do Papa é uma clara e radical refutação da motivação religiosa da violência...querendo cultivar uma atitude de respeito e diálogo com as outras religiões e culturas e, evidentemente, com o Islão"

Mas, ainda assim foi considerado insuficiente. Continuou a pedir-se um pedido de desculpas formal e na primeira pessoa, outros exigiram que o Sumo Pontífice renegasse publicamente o discurso proferido.

Mas, da forma como eu vejo, isso nunca podia ser possível.

O Santo Padre não pode pedir desculpa porque... não ofendeu!

Assim foi, de forma resumida, o impacto que o discurso teve no Islão. Mas também no Ocidente este caso foi, ou ainda é, mediático.

Como tal, sou da mesma opinião do Dr. Durão Barroso – Presidente da Comissão Europeia, que expressou a seu desapontamento pelo facto dos líderes europeus não terem apoiado o Santo Padre depois das críticas e das ameaças que recebeu do mundo árabe.

Dizendo, ao semanário alemão Die Welt am Sonntag:

"Fiquei desapontado por não ter havido mais líderes europeus a dizer – 'É claro que o Papa tem direito de expressar o seu ponto de vista’ (...) "Temos de defender os nossos valores"

Eu considero que, entre outras coisas, Bento XVI fez, e bem, uma defesa veemente do Cristianismo como o "criador" da Europa e a sua qualidade racional como o fruto da helenização da Europa.

Pertinente foi também o que diz Luís Delgado, no Diário de Notícias, no dia 25 de Setembro de 2006:

" Carlos Magno, na sexta-feira, na sua qualidade de comentador do Contraditório, já tinha levantado a questão, com a sua característica veemência. Que seria de nós se um dia se fizesse um filme menos correcto sobre o profeta do islão ou um livro como o Código Da Vinci?! Era o fim do mundo, literalmente.

É essa a nossa diferença, e superioridade moral, da qual nunca deveremos ter medo, ou abdicar, em nome das ameaças de grupos fanáticos que ameaçam as nossas democracias.

A Europa, mas todo o mundo ocidental, cristão e democrático, tem mostrado a sua verdadeira faceta perante esta crise, que não passa de uma lividez receosa, que não inspira nada de bom para o nosso futuro como civilização moderada e respeitadora do Homem.

Há fronteiras que não se passam, ou deixam passar, e esta cobardia colectiva não augura nada de bom.

Hoje foi assim, mas amanhã viveremos num mundo de trevas, com medo de falar e pensar. É esse mundo, horrendo, medieval, brutal e sem nenhum respeito por nada nem ninguém, que se levantou contra o Papa, e que viu, sem surpresa, uma Europa vacilante, medrosa e inquieta. Pagaremos caro, mais década menos década, por esta cobardia colectiva."

Termino dizendo:

Poderá entender-se a cultura ocidental como o conjunto de todas as manifestações culturais desenvolvidas ao longo da evolução histórica da civilização ocidental.

Neste sentido, o Ocidente não é visto apenas como uma mera regionalização mundial obtida do ponto de vista geográfico, mas sim num conceito mais amplo, relacionado com uma determinada ideia de sociedade que foi vista e celebrada pelos povos ocidentais.

A Cultura Ocidental tal como a conhecemos foi evoluindo ao longo da história e tem sofrido desde sempre ameaças.

Mas, para mim, hoje 30 de Setembro de 2006, cinco anos e dezanove dias depois 11 de Setembro de 2001, o mais importante é reconhecer que há dias, como o 11 de Setembro, que não devemos esquecer. Não podemos dar tréguas ao terror. Há acontecimentos que, como este, não nos podemos esquecer, esquecê-los é virar as costas à História. Aos inocentes, devemo-lhes isso. Não esquecer.

Considero que uma das maiores medidas que podemos tomar contra o terrorismo é vivermos livres.

Está nas mãos de cada um viver sem receio, sem temor. Dessa forma não é o Governo, ou a NATO, ou a ONU, etc. que nos protege... Somos nós a zelar por nós, pela nossa sociedade. O terrorismo como a palavra indica vem de terror e do semear do mesmo. A razão pela qual nós, os ocidentais não devemos, nem podemos ter medo reflecte-se na razão pela qual a nossa coragem não deverá nunca ser abalada: a crença e orgulho nos valores morais, na herança cristã, no testemunho e história secular, no sagrado reflexo da cultura ocidental na nossa civilização, na nossa sociedade.

Cada vez que vivemos livremente, cada vez que damos a nossa opinião, cada vez que optamos, que votamos, que exercemos os nossos direitos e deveres como cidadãos de um país livre, por cada debate, em cada questão ou contestação, em cada segundo em que a sociedade ocidental vive livre e sem medo, aqui sim, é uma batalha ganha ao terrorismo, trata-se de uma vitória esplendorosa e avassaladora dos valores ocidentais, da tradição cristã e da história europeia sobre a cobardia do terror.

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